13 de fev. de 2012

O livro

Então ela abriu o livro que há semanas começara a ler sem muito avanço pelas páginas e percebeu que estava todo em branco. Folhou, folhou e a conclusão era sempre a mesma: estava louca.

Aquilo não fazia sentido, na noite anterior tinha pego o livro, percorrido algumas linhas, lido sem muito interesse, mas mesmo assim todas as letrinhas estavam ali, formando palavras que eram possíveis de entender, estava tudo normal. Agora já não mais, tudo em branco, somente o vazio preenchia aquele livro. Primeiramente, ansiou estar sonhando, mas isso acontecia nos livros que ela lia, ou tentava ler, não com ela. Nunca com ela.

Quando tirou os olhos do livro e fitou a parede que reinava em sua frente, viu que sua vida, de repente, se tornara preta e branca, e não era um caso clínico, patológico, muito menos daltonismo repentino, era a falta de vida em sua própria vida.

Marina percebeu que os dias que vieram se arrastando até ali não trouxeram nada que ela pudesse sentir falta, muito menos alguém que a deixasse com saudade. Desejou sentir saudade, puxou de toda a memória possível e não encontrou ninguém para dar a ela esse sentimento.

Sabia que sua vida tinha sido sofrida até ali, perdeu a mãe com dois anos, o pai aos treze, e graças a grande idéia dos pais de terem fugido para ficarem juntos, usarem nomes falsos para ela, não encontrou outra pessoa qualquer da família. Foi morar em um abrigo e por já ser tão velha, ter vivido tanto, ninguém quis adotá-la.

Morou no abrigo até terminar os estudos, depois foi trabalhar em casa de gente rica. Um dia a sorte lhe sorriu e ganhou uma pequenina casa do governo, sabia que tinha dedo dos patrões no meio, mas eles nunca disseram nada, apenas agradeciam “obrigado por ter salvado nossas vidas”.

A vida deles, eles queriam dizer o pobre Vicente, que tinha berço de ouro, mas não sabia quem eram os pais. Isso também Marina achava que só acontecia nos seus livros, mas também aconteceu com ela, chegando a um ponto do bebê chamá-la de mãe. Sua primeira palavra.

Foi numa dessas que veio a carta de demissão, sem constar motivos, os patrões dizendo que gostavam muito dela, mas que os serviços já não estavam sendo suficientes. E na coincidência que só a tal vida traz, o mundo lhe sorriu trazendo aquela casa que ela viu ser posto cada tijolo e lá começou também a construir sua vida sozinha.

Sozinha. Como essa palavra pesou naquele instante de memórias revividas, sentindo cada célula do corpo gritar a ausência de pessoas ao seu redor. Suas companhias eram aqueles livros que no abrigo ensinaram que poderiam ser retirados gratuitamente na biblioteca municipal.

Agora o próprio livro tinha terminado com sua alegria, com seu prazer da leitura mesmo esse prazer fosse sentir o cheiro do livro e imaginar-se em outra vida, com o livro fechado. Ela dizia que essa era uma das magias do livro, ele poderia levá-la a qualquer lugar, mesmo sem ler uma página sequer. E não sofria reprovações, afinal, ninguém estava ali para ouvi-la mesmo.

Aquele livro começou a assombrar Marina. Como ela o entregaria naquele estado para a biblioteca? Todo em branco, na capa só dizia O LIVRO, e não mais aquele título em letras curvadas, tão lindas em amarelo e vermelho, que ela não consegue lembrar qual era.

Fechou os olhos e abriu o livro mais uma vez, também abriu os olhos, mas nada, nenhuma palavra quis novamente se materializar ali. Teve vontade de chorar, mas ainda passava muita coisa em sua cabeça. Desacreditava em deus porque não podia existir um ser superior que quisesse que ela sofresse tanto assim. Acreditava em Deus porque era a única explicação por passar por tantas provas e expiações em sua vida.

De súbito, Marina levantou-se da borda de sua cama, foi até a janela e viu que não havia mais paisagem. O branco tinha tomado conta de tudo. Lembrou de uma passagem que a professora do primário falou, que quando estamos tristes o mundo passa a ser cinza. Mas o mundo de Marina era preto e branco, como um desenho iniciado.

Ela era este tormento todo, a confusão mental e a indecisão espiritual, a mistura monocromática que instantaneamente começou a governar aquela vida, mas acima de qualquer coisa, ela era só. Abraçada no livro como em um amigo que há muito tempo não vê, mas ela não fazia idéia do que era ter amigos, contar de verdade com uma pessoa. Pessoas que ela havia conhecido ao longo de sua trajetória, tinham se perdido no tempo. A maioria ela nem lembrava o nome, outros soubera que tiveram filhos, foram estudar longe, mas ela estava ali. Estagnada. Crua.

Assim que Marina foi encontrada alguns dias depois. Deitada sobre a janela, abraçada em um livro velho, olhar perdido para o horizonte e um corpo magro, cansado e já sem vida.

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